Tuti Minervino não é apelido nem resultado de numerologia, é o nome mesmo de um jovem artista baiano, sujeito peculiar, que nasceu às 11h do dia 11 de junho de 1982 e morou toda vida no bairro do Tororó (onde hoje se procura água pra beber e não se acha), numa casa antiga, que abrigou sua família por três gerações, e de onde esse rapaz, em meio a uma enormidade de objetos em busca de contexto, que nos transporta a um bazar-cafofo-atelier, devota sua vida a idéias criativas.
Dia 11 de setembro de 2005. Uma coroa e óculos de plástico (com um delicado coraçãozinho no meio) que imitam adornos da Estátua da Liberdade de Nova Iorque, uma camiseta com uma caveira enorme estampada, tênis All-Star, bermudão e meia-calça preta. Este é o traje de Tuti durante as quatro horas que passa, como um comerciante pra lá de informal, diante do colégio Central no bairro da Mouraria tentando vender um quadro com a exuberante paisagem urbana da capital nova-iorquina. Na foto um detalhe: encontram-se as famosas torres gêmeas do World Trade Center – derrubadas quatro anos antes por um ataque terrorista. Quem compraria algo deste tipo depois de um fato tão agressivo e extenuantemente relatado pela mídia? Isto seria uma performance ou mais um fragmento do incessante diálogo inusitado que Tuti Minervino trava com a vida?
Além de situações como a citada o artista, que é bastante profícuo, também emprega seu empenho na produção de objetos, instalações, fotografias, instaurações, literatura e performance - este ultimo um capítulo a parte. De modo geral, apesar da multidisciplinariedade, esta produção liga-se através da sua incrível capacidade de relacionar a diversidade de fatos, objetos, ditos, indumentárias, comportamentos e os manipular em direção oposta ao domínio da razão. Digo que a performance é capítulo à parte, pois, após ela, o mundo da arte se curvou irreversivelmente em direção à vida, e da obra de Tuti pode-se dizer o mesmo. Tendo algum tempo para conviver com o artista percebe-se que, desde as roupas extravagantes ao diálogo, tudo esbarra em sua poética, e, inevitavelmente alguns fragmentos deste comportamento tornam-se submissos a formatos que podem ser digeridos pelo público e chamados de arte.
O artista não teve formação escolar completa. Resume sua instrução formal sobre arte à oficina “Processos contemporâneos” ministrada por Caetano Dias, no MAM, em 2002. Credita suas primeiras demandas artísticas à influência do pai - pessoa bem humorada com quem concorria nas piadas e que sempre recorreu a deslocamentos lingüísticos como passatempo, chegando a ganhar um festival universitário de música com a canção intitulada “Mu(L)tilados.” – e, aos concursos do “troféu mais maluco” que promovia durante a adolescência nos campeonatos de vôlei da rua em que mora, que acabaram resultando (depois de uma vasculhada pela casa) no que ele diz ser o primeiro trabalho em que enxergou a possibilidade da arte: um barbante, que sustentava uma galinha depenada de borracha, dentro de dois aros de tambor de bateria cruzados, formando uma espécie de esfera. Bateu o olho e deu o nome: “A linha, a galinha e a gaiola”. Ele foi o único concorrente e obviamente o vencedor.
A capacidade associativa diante do absurdo insustentável que há por trás da opulência de recursos, produtos e mercadorias da sociedade de consumo, onde nem sempre há demanda para o que se produz, é uma estratégia de Tuti Minervino. No objeto é nítido que seu processo criativo acontece, principalmente, do acúmulo e observação de produtos e refugos onde podemos identificar os métodos do ready-made - apropriação do objeto pronto deslocando-o de contexto; assemblagem - construção de um elemento único e individualizado a partir da união de outros; e da bricolagem - reconfiguração da função ou forma do objeto pronto a partir de novas demandas, dispensando a ação industrial ou de mão de obra qualificada.
Aliás, a definição da bricolagem está muito de acordo com o nome da primeira mostra do artista, “Minhas coisas que eu faço”, de 2001 – realizada “na garagem da casa de Luiz Augusto, rua Ismael Ribeiro”, como ele próprio enfatiza, em resultado a intensa vontade de posicionar suas criações em órbita semelhante à mostras que via em Salvador naquele período, como a de Yoko Ono (que o impressionou bastante há alguns anos), com um público mais modesto, porém, nada apático àquele jovem ávido por descondicionar o cotidiano do bairro, desvendando novas e estranhas aptidões de objetos domésticos, a exemplo de “Viajando na parada” (duas malas em cima de uma bicicleta ergométrica) e “Maria vai com as outras”(um ventilador desligado que movimenta sua hélice ao ser soprado por outros três ventiladores ligados)
Nesse período começou a produzir compilações xerocadas de textos curtos (poesias, poesias visuais ou “pequenas tiradas”) bem ao estilo Tuti. Em “Engenheiro de Obras Prontas” lê-se coisas como: “O ladrão entrou na sapataria, experimentou o sapato e deu no pé”.
Desde suas primeiras produções Tuti Minervino tem, exaustivamente, apostado na “dobradinha” objeto/ator/ação x título. Isso nos inclina a refletir sobre sua relação com a arte conceitual lingüística - da qual ele diz não ter muitas referências – ou, aos deslocamentos textuais criados por Marcel Duchamp, com seu mictório intitulado “Fonte”, para a emersão do conceito. Porém, noutros momentos, podemos ver a sofisticação formal deste recurso lingüístico (reconfiguração, desconstrução, ritmação...) como ferramenta para maior abrangência do conceito como utilizado pelos neoconcretistas. É o que podemos observar em “Nesse Caos” - performance onde duas pessoas, uma vestida com máscara de Osama Bin Laden e outra com máscara do Mickey Mouse, após consumirem achocolatado Nescau, inflam suas caixas com assopros e as explodem com pisadas fortes. Perceba que a lógica de “Nesse Caos” é a busca do questionamento das motivações de conflitos locais que tomam proporções globais através da ridicularização dos seus atores/símbolos por meio de uma brincadeira infantil. A ação é potencializada pelo título que atribui ao caos (“Nesse caos”) semelhança na grafia e na sonoridade do produto “Nescau”, e, sugere motivações ao conflito ligadas ao consumo.
Observamos, nesses exemplos, a relação com o restante de sua produção, pois os textos/títulos/conceitos incorporam falas ordinárias - verdadeiros refugos da palavra - e os ressignifica propondo a adoção de uma prática do desvio que acaba por criticar as táticas cotidianas.
Da sua participação no bazar “Balaio Cult” (2001/ 2002) aconteceu o encontro do trabalho de Tuti Minervino com o artista plástico baiano Ayrson Heráclito, ficando este responsável pela curadoria da 2ª mostra do artista - “Isso Cata”, realizada em 2002, no Instituto de Música da Universidade Católica, quando a regra da bricolagem se manifesta com grande força. Na mostra tiras partidas de sandálias Havaianas viram bonecos e as solas são como pranchas de surf por cima de uma lona plástica azul. O nome da obra: “Os Havaianos”.
Neste período produziu objetos, situações e registros a partir de refugos e coisas encontradas na rua, ao acaso. O processo de incorporação desses elementos na sua criação é uma proposta conceitual, além de uma boa oportunidade para uma produção economicamente mais viável.
Daí então, consegue mais inserção no meio de arte passando a freqüentar espaços alternativos e oficiais de mostras. As aventuras, amizades, garimpagens e exposição continuam, analogamente, em feiras baianas como a “Balaio Cult” e a “Escambau”.
Volta e meia Tuti Miniervino faz um bazar com suas obras e objetos pessoais. Tudo no mesmo “barco”. Nesta colcha de retalhos, na verdade, tudo se parece: é gasto, usado ou antigo – o que tem função e o que não tem (será?). Afinal, para Tuti Mivervino a função das coisas está de acordo com a demanda da vida e da dinâmica que nos faz sentir mais vivos ainda, independente da ordem efetiva das coisas, dos fins definitivos a que eram antes designadas pelo poder constituído da apatia e da mesmice que, às vezes, insiste em nos incomodar, e dos quais pretendemos nos insurgir.
Pedro Marighella - Novembro/2008